Márcio-André
(Portugal)
POEMAS
1.
um salmão penetra a tarde em quietude de peixe
metaleve o lume
phlox ou o flúor de mil flores –
da janela a fábrica estacionada como um trem
falha única no coração do homem
ou o negativo de um homem
e a raça natimorta das roupas nos varais
para ordenar os livros é preciso desarrumar a cidade
e todas as coisas que não têm deus
as pipas no fim da tarde ancoram as casas no céu
e vislumbramos:
buracos negros são rebarbas de universo
2.
por um animal
todo-feito de tetra-pak
que se devora enquanto se move
esse animal-caligrama
que transpassa o alfabeto através do corpo
e a imundície da rua através do tempo
usina de merda contra
as mil falhas tectônicas do céu
mesmo a morte faz mais sentido quando fodemos
usina de força gerando forças contrárias
uma pedra sobre a mesa tem mais alma q um
rinoceronte a lograr-se
no ladrilho das placas
ou ainda
esse ordinário que vive das coisas complexas:
o dia a dia alternando suave
os terrenos baldios a ordem das casas os vagões de trem
3.
o dia surge com a fúria do ouro
e ante ele
antenas conspiram a revolução
no seu entendimento de antenas
nascer e morrer já não é grande coisa –
sobra aguardar dos ligamentos o câncer
no tempo do tempo que resta
esta música de pedra:
esse eu
que habita um corpo é menos que o corpo
[para conhecer a pedra
sê pedra]
e recusa a ser feliz nesta cidade
e envelhece sem jamais ter sido jovem
pois tudo tem a história que não podemos supor
ainda que as antenas sustentem elegâncias de inseto
contra a tarde
cardume no encardido das lajes
4.
aqui do estômago desta baleia
a cidade é um cardume cintilante
e
a estátua de drummond tem as costas ao oceano –
[as estátuas são para os homens não para o mar]
cultivar um peixe por dentro
para um dia comê-lo
esperando uma mulher surgir da precisão da ossada
um dia somos felizes em nosso jardim cetáceo
e ela caminha suavemente ao meu lado
sonhando o domingo mais triste do mundo no subúrbio do lado de lá
um dia estamos na meia idade e bebemos porque não há opção
e o guindaste no cais estará esmagado como um inseto morto
diante das mil falhas na goela das águas
o mar está na foto dos homens não no sonho das estátuas
5.
no lado mais claro da casa e da mulher
a tatuagem presa ao novelo da mão
na tablatura-pele da miragem da mão
o fubá entre os dedos
o milho solar que se come maduro durante os dias
e na superfície membranosa do tato : terracota :
a possibilidade do vôo antes do café da manhã
ela dentro dela
gestando no peito sua fêmea durante o ar
isso que a torna leve:
o corpo de laranjeira
o rabo perfeito dentro da lycra de ginástica
a cada dia os objetos a testemunham
dama folheada nas feiras
esta mulher como cavalo
numa cidade sem nome
e sua cabeça:
6.
o desfibrilador é antes uma relíquia verbal
que um aparato do esqueleto
o tempo na palavra
tudo que era primeiro moveu-se no verbo
mesmo a bomba cardíaca e seus vasos sanguíneos
é nele que as coisas despertam então
a língua-que-não-diz
o silêncio
confere a física particular de cada mundo
o corpo está mais que em volta da espinha
o corpo fabrica uma cidade a cada estrela que ganha nome
[o albatroz retém a alba na corpo]
moder a palavra
como se morde um coração
começando pelas aurículas
cada palavra é um sacrfício –
uma maldição
um decreto
7.
diante da grandeza do mundo:
resolvemos ser meia coisa
estamos produzindo tanta unha para o sec. xxi
– post-tchernobyl age:
ninguém calculou o impacto das nuvens
sobre crânios sem chapéus
concluiu-se apenas que
os fumantes tem duas almas
ou pelo menos uma desculpa para ir ao ar livre
[os comerciais da free definiram enfim o que é arte]
sobrou:
a busca incansável por atlâtida
essas ruínas raras reclamadas ao mar
[atlântida nunca esteve no passado
tão somente no futuro –
o passado – sabe-se – é daqueles que o enxergam primeiro
e o caminho dos carros não é o mesmo que o dos pedestres
8.
o que ela tem nos braços
não é uma égua
nem um cão
a zebra é um [duas raças intercaladas]
pesadelo do cavalo
a zebra ao avesso de uma costela única do lado de fora de uma carcaça única
[alfabeto de ossos na escrita muscular
a zebra com vértebras na cara
e suas mil patas pela manhã
dia-noite-zebra
parte revelada nas trevas
parte oculta ao meio-dia
9.
é preciso ser confidente do ar
para suportar a força da gravidade –
azul : esta atmosfera : azul
caiando a casca das frutas mais novas
sentar-se ao pé da porta
e esperar
que a manhã seja outra
e termine numa fenda acolhida entre folhas
arenosa : uma dobra : sim
partir como quem chega
no momento preciso
luis de naváez dizendo
este velho mundo q cabe inteiro em meu sonho
e sempre a mesma intuição
de não pertencer ao lugar onde se esteja:
quando todos despertam a cidade sonha
estrangeira de si mesma e do tempo –
10.
o rio é o contorno de uma outra cidade que não é o rio
e mesmo s. paulo poderia ter outro nome
e ser outra cidade
disfarçada nas mesmas ruas
desde a métrica [vascular] dos viadutos
ou o aro retrátil nas luzes
desta prisão que se chama espaço:
nenhuma outra vida ou cidade pode se cumprir além dessa
[não se pode ser jovem em outro lugar]
sobra
o caroço-adorno de um semáforo
relíquia única de única memória
uma mulher nua para cada lugar onde se esteja –
duas cidades sonhando-se mutuamente
quando não estamos dentro
todo edifício almeja leveza de paisagem
11.
desce contra seu nome um outro nome
pois quando voltasse talvez não fosse mais humano
mas peixe ou marinheiro
fumando o timbre dos alumínios:
[a-peixe]:
o colisor de hádrons sobre a cabeça
PERPETUUM MOBILE de
nanoestrelas resistindo aa própria morte:
fumaça-flor do seu cigarro
ela sonha com esse homem que virá do mar
[um corpo q vive em muitos corpos]
como a semente é mecanismo para águas:
há um momento
onde o destino pára de funcionar
e ficamos por conta própria:
[estamos tão sujeitos à vida quanto à morte]:
mas sobretudo:
não se separa os homens dos peixes
quando o mar se abissa na semente quando árvore:
12.
lua-lâmina-omoplata
o cão de porcelana desfeito na porcelana da constelação
ou esta água pesada nos coágulos da luz
ali onde da matéria mole do sol
se forjam estrelas
cheguei a idade que um dia sonhei ter
mas o sonho não permaneceu com a idade
aqui nesta terra-longe
antecidade ante tudo o que foi feito
[há lugares que esquecem de se atualizar segundo os mapas]
os imortais cunharam homens
para ver um mundo por seus olhos
mas a vida inteira temos esperado por algo
no outro lado da vida inteira
das realidades possíveis só percebemos esta
onde todos já vêm com encaixe para alguma máquina
uma geração vendida por pouco
esqueceu que sistemas são subversíveis –
subvertamos agora os astros que não pertencem a nós
a língua:
astrolábio de céu da boca
13.
deste
tubarão voltaico voltado à baía
o mundo pela vidraça
homens e bois dormindo em camadas
homens e cães em diálogo uniforme
toda cidade é insuficiente
e as pessoas se repetem
como se a questão fosse economizar trejeitos
sobra a mesma sequência de casas
a mesma cavidade na nervura de pedestres
o neon condensando a hemolinfa ao estado de gente
máquinários-girantes
robôs dançando terríveis no céu
do ferro busa ao linguote
a metrópole reserva um tumor para cada habitante
[a radiatividade também santifica]
as portas da virtualidade se abrem
enquanto as fronteiras se fecham ainda mais
eu vi assentar cada pedra nesta cidade
[um pedra em cada rim]
e sei das ruas – incompletas – sobre outras ruas
por trás de cada cortina manivelas para desmontar o sol:
amar uma cidade ao ponto de fazê-la caber nos olhos
14.
um estranho nos arvoredos
um estranho por trás do muro
aguardando
que não esperemos por ele
fingindo que não existe ou que não está lá
[à quem se deixa a lâmpada de um cômodo acesa pela madrugada?]
um estranho
confere nas mínimas particularidades do espaço
o iminente perigo da imprecisão
do licor de vidro destilado
ao travo de aguardente na língua
a emancipação dos ligamentos
para viver enfim no fim de si mesmo
e nas miragens de mar com suas traves e cavalos-de-pau
fazendo defluir de si mesmo
o que em si tem de pronto
[quem vive diante do mar habita em todas as partes]
esse estranho nos arredores
o resto dele: poluição por assepsia
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Márcio-André
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